Observatório do TIT: Reanálise de provas e interpretação de normas de imunidade e isenção
Os fundamentos jurídicos que desafiam a análise meritótia pela Câmara Superior do TIT
Dando continuidade ao monitoramento da jurisprudência no âmbito do Projeto Observatório de Jurisprudência do TIT-SP, neste artigo nos propomos a analisar a questão relativa à reanálise de provas no âmbito da Câmara Superior do TIT e a interpretação de normas de imunidade e isenção. Para tanto, vamos nos ater à análise das decisões proferidas nos autos dos AIIM n° 4.090.891-4, AIIM n° 4.047.632-7 e AIIM n° 4.090.542-1, julgados pela Câmara Superior respectivamente em 07/07/2020, 22/04/2021 e 29/06/2021.
Os Autos de Infração referidos acima foram selecionados por conferir entendimentos divergentes, sob um mesmo contexto fático, a casos de interpretação de normas de imunidade e isenção. A partir das análises, procuraremos extrair das conclusões encontradas os fundamentos jurídicos que desafiam a análise meritória da interpretação de benefícios fiscais, em contraponto com a impossibilidade de reanálise de fatos e provas pela Câmara Superior do Tribunal de Impostos e Taxas.
Na primeira fase do Observatório de Jurisprudência do TIT, o artigo “Redução da base de cálculo, alíquotas diferenciadas, isenção e não incidência”, coordenado por Fábio Nieves Barreira, analisou parte do tema proposto no presente ensaio e uma das conclusões daquele estudo foi o entendimento majoritário do Tribunal de Impostos e Taxas quanto à interpretação literal das regras de isenção a teor do artigo 111, inciso II, do CTN.
Posteriormente, já na segunda etapa do Projeto Observatório de Jurisprudência do TIT, foi publicado excelente artigo de autoria de Kalinka Bravo que analisou a decisão proferida nos autos do AIIM n° 4.090.891-4, precedente histórico da Câmara Superior sobre a interpretação das regras de isenção, que alterou o entendimento do Tribunal sobre o alcance de benefícios fiscais.
Ao examinar o AIIM n° 4.090.891-4, a Câmara Superior conheceu por unanimidade o Recurso Especial apresentado pela Fazenda Pública do Estado de São Paulo, suscitando debates sobre os fundamentos jurídicos que devem nortear a interpretação de normas relativas a benefícios fiscais. Ao final do julgamento, que contou com três votos de preferência, além do voto do juiz relator, reverteu-se o antigo posicionamento da Câmara Superior pela interpretação literal das regras de isenção, levando-se em conta critérios como o interesse público, garantias constitucionais à saúde, à dignidade e à vida.
No AIIM n° 4.090.891-4, discutia-se o alcance da regra de isenção em relação às saídas de stents classificados no código NCM 9021.90.81, em razão do entendimento da autoridade fiscal de que os produtos seriam fabricados a partir de um material diferente daqueles descritos no Convênio ICMS 01/99 (que prevê a isenção do ICMS em relação às operações com equipamentos e insumos destinados à prestação de serviços de saúde).
A 5ª Câmara Julgadora deu provimento ao Recurso Ordinário e cancelou a autuação reconhecendo a aplicação da isenção sobre a mercadoria objeto da autuação. A Fazenda Pública do Estado de São Paulo interpôs Recurso Especial em razão da divergência com outros julgados que haviam reconhecido a impossibilidade de extensão da isenção prevista no Convênio ICMS 01/99.
Por unanimidade de votos, os julgadores entenderam que os acórdãos apontados como paradigmas revelariam a divergência apontada, preenchendo o pressuposto formal de admissibilidade, e o recurso da FESP foi conhecido. Neste caso, apesar da análise recair sobre a composição dos materiais a partir dos quais é fabricado o equipamento stent comercializado pelo contribuinte autuado, não houve qualquer manifestação sobre a impossibilidade do reexame do conjunto fático-probatório do caso concreto.
Inclusive, essa foi a circunstância excepcional que diferenciou o julgamento do AIIM n° 4.090.891-4 dos demais casos nos quais seria necessária a análise da interpretação de normas isentivas, justamente pela remansosa jurisprudência do Tribunal de Impostos e Taxas sobre a imprestabilidade do Recurso Especial para o reexame de fatos e provas.
Nesse contexto, destacamos que os estudos anteriores publicados no âmbito deste Observatório de Jurisprudência confirmaram que a maioria das decisões da Câmara Superior, em análise de casos que suscitavam a interpretação de normas de isenção, foi no sentido de que tal exame demandaria a reincursão no acervo fático-probatório.
Foi o que ocorreu no julgamento do AIIM n° 4.047.632-7, segundo acórdão objeto do presente estudo, que versava sobre a tributação da saída de carne bovina sob a forma de hambúrguer, questionando a abrangência da norma isentiva prevista no artigo 144 do Anexo I do RICMS/SP.
Neste caso, o cerne da questão residia no exame do benefício fiscal de isenção na saída interna de carne e demais produtos comestíveis frescos, resfriados, congelados, salgados, secos ou temperados, resultantes do abate de aves, leporídeos e gado bovino, bufalino, caprino, ovino e suíno.
A 10ª Câmara Julgadora deu parcial provimento ao Recurso Ordinário interposto pelo contribuinte para reconhecer que, naquele caso (AIIM n° 4.047.632-7), o hambúrguer era composto de carne bovina in natura moída, compactada em formato redondo e embalada uma a uma separada por papel celofane ou vegetal, alterando apenas sua apresentação, sem modificar a condição de carne em estado natural que atrairia a norma isentiva prevista no artigo 144 do Anexo I do RICMS/SP.
Interposto o Recurso Especial pela Fazenda Pública do Estado de São Paulo, o voto vencedor conduzido pelo juiz relator foi no sentido de que “para que haja pronunciamento meritório por esta Câmara Superior, concluindo pela existência ou não de industrialização na produção de hambúrguer, faz-se necessário enveredar-se pelas provas dos autos, em minuciosa análise do processo produtivo da Recorrida. Não se revela possível concluir se o hambúrguer é um produto proveniente de industrialização sem que se averigue, com razoável profundidade, as provas dos autos”.
Importante observar neste caso que a Câmara Julgadora ordinária já havia analisado com profundidade a composição do hambúrguer objeto da autuação e constatado que a mera alteração na apresentação do produto não retiraria a condição de carne em estado natural a que se refere a norma isentiva. Portanto, os fundamentos adotados em segunda instância poderiam desafiar a análise do mérito sem o reexame de fatos pela Câmara Superior.
Porém, por maioria de votos prevaleceu o voto do juiz relator pelo não conhecimento do Recurso Especial fazendário em razão da impossibilidade de a Câmara Superior adentrar ao exame de fatos e provas que a análise da norma isentiva demandaria. Ou seja, o que se pretende ressaltar é que apesar de haver precedente da própria Câmara Superior que analisou a composição do equipamento médico stent (imiscuindo-se nas circunstâncias fáticas firmadas em ordinário), a conduta adotada pela Câmara Superior não se confirma em outros julgados proferidos após a decisão do AIIM n° 4.090.891-4.
Logo, tal evidência empírica demonstra que a existência de fundamentos jurídicos relevantes, tais quais as garantias constitucionais à saúde, à dignidade e à vida, a essencialidade das mercadorias, bem como a necessidade de interpretação finalística da norma jurídica são circunstâncias que podem definir a necessidade de análise do tema pela Câmara Superior (ultrapassando a exegese literal dos dispositivos e atenuando o rigor dos pressupostos de conhecimento do recurso na instância especial).
Corroborando essa assertiva, mencionamos a decisão proferida nos autos do AIIM n° 4090542-1, julgado em 29/06/2021, no qual a Câmara Superior do TIT analisou a aplicação da imunidade tributária prevista no artigo 150, inciso VI, “d” da Constituição Federal (relativa a livros, jornais e periódicos e o papel destinado a sua impressão) às mercadorias objeto da autuação que foram enquadradas pela fiscalização como brinquedos acessórios de livros que, embora comercializados conjuntamente com os livros (de forma integrativa à estes), não estariam abrangidos pela imunidade tributária.
Em decisão não unânime de segunda instância a 3ª Câmara Julgadora entendeu que apesar da natureza educativa dos produtos autuados, se trataria de uma mercadoria que é parte livro, parte brinquedo. Assim, manteve-se a autuação relativa à tributação dos acessórios que acompanhavam os livros infantis, por não haver condições de incluí-los na norma imunizante.
Na ocasião do julgamento do Recurso Especial interposto pelo contribuinte, a relatora do caso votou pelo não conhecimento do recurso pois, em seu entendimento, o aresto paradigmal não se prestaria ao cotejo da divergência por se tratar de situação fática distinta (no paradigma juntado naqueles autos foi reconhecida a imunidade de álbuns de figurinhas e seus cromos).
Em seguida, apresentaram votos de preferência os juízes Carlos Americo Domeneghetti Badia e Argos Campos Ribeiro Simões, discordando da relatora para conhecer o Recurso Especial apresentado pelo contribuinte por entenderem que os pressupostos fáticos que ensejaram a decisão paradigmática são exatamente os mesmos da decisão recorrida: tal como no paradigma no AIIM n° 4090542-1 se discutia a possibilidade de extensão da imunidade a operações com mercadorias que não guardam relação com o conceito mais corriqueiro de livro.
Na análise do mérito sobrevieram dois votos vista que destacaram relevantes fundamentos jurídicos sobre a necessidade de análise do tema pela Câmara Superior como instância uniformizadora da jurisprudência, reconhecendo a imunidade dos livros infantis comercializados com acessórios integrativos.
No voto vista do juiz Argos de Campos Ribeiro Simões é possível observar que há referência no sentido de que a situação fática que envolveria a análise meritória havia sido firmada na instância ordinária, em consonância com a vedação ao reexame de fatos pela Câmara Superior. Destacou-se a “natureza educacional” dos brinquedos ligados às estórias escritas, que os torna parte intrínseca dos produtos em discussão. Em termos educacionais contextualizados e levando-se em consideração a análise finalística da norma, os acessórios são parte do conteúdo ali descrito, do livro em si.
O I. juiz Carlos Américo Domeneghetti Badia, que conduziu o voto vista que prevaleceu no julgamento, brilhantemente concluiu: “A resolução da pendência não pode ignorar a evolução da ciência da educação, que nos dias atuais preconiza forma lúdica de aprendizagem através de jogos e brinquedos para o público infantil. O avanço tecnológico e cultural abre as portas para novos e mais eficazes meios de difusão do conhecimento, a recomendar que se estenda a norma exoneratória ao formato de livro aqui tratado, de forma que a interpretação do preceito imunizador evolua passo a passo com os progressos da sociedade”.
Logo, da análise do AIIM n° 4090542-1 se observa que neste caso a Câmara Superior realizou o exame dos autos a partir das circunstâncias firmadas na instância ordinária, sem considerar que tal análise esbarraria na vedação do reexame de fatos e provas. Em detrimento de requisitos formais, restou reconhecida a natureza educacional dos acessórios que acompanhavam os livros, prestigiando a metodologia lúdico-educacional que incentiva e facilita a compreensão dos textos pelo público infantil.
Inegavelmente, o julgado é um importante paradigma que estabeleceu que o conceito de livro não pode ficar amarrado à sua antiga concepção, prestigiando a finalidade imunizante da norma sobre livros, jornais e periódicos, independente do veículo pelo qual é transmitida a mensagem didática atrelada ao conhecimento.
Conclusão
Como se sabe, o Recurso Especial no Tribunal de Impostos e Taxas tem o importante objetivo de uniformizar o entendimento do referido órgão sobre teses e temas controvertidos. A uniformização da jurisprudência é o principal veículo para se conferir maior segurança jurídica na relação fisco-contribuinte, evitando que a apreciação de fatos iguais ou semelhantes enseje conclusões diversas.
Por possuir natureza eminentemente jurídica, a matéria fático-probatória não pode ser objeto de reanálise, o que traz dificuldade extra tanto para quem interpõe o recurso (seja Fisco ou contribuinte) quanto para quem tem a atribuição de julgá-lo. É esta dificuldade que torna o tema examinado nesta breve análise tão delicado.
O que se pode constatar a partir da análise dos arestos analisados é que existem temas mais sensíveis e que devem ser analisados com cuidado pelos operadores do direito. Conforme se constatou no exame dos AIIM n° 4.090.891-4 e n° 4.090.542-1, garantias constitucionais à saúde e à vida, à educação, bem como a essencialidade das mercadorias devem nortear a análise da interpretação de normas isentivas e a extensão de normas imunizantes aos casos concretos.
Inegável a existência de temas importantes que desafiam a interposição de Recursos Especiais no âmbito do TIT. Nem se questiona, também, que temas de especial relevância no âmbito jurídico e social merecem a análise pela instância especial e uniformizadora de jurisprudência do Tribunal de Impostos e Taxas, evitando a existência de decisões divergentes sobre o mesmo tema.
Porém, como visto, apenas em temas e circunstâncias excepcionais a Câmara Superior ultrapassa a exegese literal dos dispositivos, dando interpretação especial a temas cuja literalidade textual não mais se harmoniza com a realidade social e jurídica da época de sua instituição normativa.
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Autoras
Vanessa Domene
Sócia DNA Advogados
Thaís Takahashi
Sócia DNA Advogados